quinta-feira, 21 de junho de 2012

Somebody that I used to know



O Felipe acordou meio zonzo por causa do tanto de bebida da noite passada. Foi literalmente uma farra. Ele levantou e caminhou pela sala, ainda com o cabelo meio bagunçado, usando aqueles óculos que ele não usa quase nunca, segurando aquela caneca de café - seu fiel companheiro de todas as manhãs, especialmente as de ressaca. E o novo "amor da vida" dele, a Manuela, ainda dormia, tranquila e iludida, deitada naquela cama de Jacarandá do quarto recém reformado para um casal recém formado... Tadinha. Tadinha mesmo, porque ela morre de ciúmes da garota que ele costumava sair, a Alice, embora ele jure de pés juntos que dela não lembra nunca. Mal sabe a Manuela que ele sabe gravado na cabeça o número do telefone da Alice e a primeira coisa que faz todos os dias é discar o número dela e desligar antes que ela atenda. Ou deixa atender, só para ouvir aquele "alô" fininho e meio rouco, aquela voz de quem acabou de acordar. E a Alice já sabe que é ele. É, ela já sabe disso. Ela já reconhece o "número desconhecido". Mas ela sempre preferiu as coisas assim, muito mais do que simplesmente chutar o Felipe para fora da sua vida. A Alice gosta do Felipe. O Felipe gosta da Alice. O Felipe também gosta da Manuela. O Felipe não vale nada e o pior de tudo é que a Manuela e a Alice adoram esse cara. A diferença é que a Alice sabe que ele é um cafajeste, mas gosta mesmo assim. A Manuela ainda compra a ideia de que ele é um bom moço. Mais uma vez: tadinha.

Mas tudo na vida tem limites, não é mesmo? Até mesmo para a Alice. E por essa o Felipe não esperava...

Ele estava cruzando a sala quando viu um papel embaixo da porta da frente. Um envelope com uma carta e seu nome. Era meio cedo para já terem levado a correspondência, até porque o porteiro da quarta feira é meio devagar para essas coisas... Mas o Felipe ignorou tudo isso e pegou a carta nas mãos. Aquilo foi mais impactante do que deveria: ele conhecia aquela letra. Mas por quê a Alice estaria fazendo isso? Deixar uma carta ali? Como ela subiu? Ela sabia que a Manuela estava lá, como arriscou assim? Algo estava errado. Na frente do envelope, seu nome, mas o mais curioso era o verso, que dizia: "Aqui, tudo que eu nunca teria coragem de te dizer pessoalmente".

Ele abriu, coçou os olhos e começou a ler a carta:

Felipe,
Pode parecer insensível eu falar isso com você por aqui e não te ligar ou me resolver com você pessoalmente (como eu sempre fiz). Mas acho que é o único jeito que eu tenho pra falar tudo que eu preciso por pra fora e nunca consigo olhando pra você. Sem falar que só assim você vai me deixar falar tudo, sem interrupções.Eu cansei. Sabe Lipe, de verdade. Andei pensando muito em nós dois e em tudo que já aconteceu e cheguei a conclusão de que desse jeito já não vale a pena pra mim. Essa vontade que a gente tem de ficar quando se vê já não me serve pra matar saudades ou coisa parecida - só serve para ser motivo de tristeza quando eu chego em casa e percebo que algumas coisas não saem do lugar. E não adianta vir com esse papinho de que já está em outra, porque eu sei que mexo com você, não importa o quão apaixonado você esteja pela Manuela. Mas a gente já não sabe mais levar essa situação. Eu cansei e acho que já tinha cansado há algum tempo. Não sou o tipo de pessoa que leva numa boa brincar de namoro de vez em quando. Para mim as coisas são mais sérias e eu nunca vou me acostumar com a ideia de gostar de uma pessoa e só tê-la quando há conveniência. Não gosto desse "gostar" e, sinceramente, não tenho vocação para mártir. Eu não mereço isso e certamente a Manuela também não.Não quero ser a pessoa que você liga só porque já está tão tarde que ninguém mais iria atender e nem quero ser a pessoa que vai te encobrir sempre nos seus rolos meio malucos ou quem vai sempre aceitar suas desculpas esfarrapadas e até fantasiosas e inventar uma borracha mágica para apagar o passado que não se apaga e tem cada vez mais cara de presente. Isso não basta para mim. Não posso ser só um conforto.Eu já fui alguém com quem você pensou em estar o tempo todo, sem precisar estar com outras pessoas. Hoje, tudo aquilo parece ser só uma mistura de carinho, uma consideração por tudo que a gente passou e que vai sempre existir, e, às vezes, desejo, carência. E isso eu reparo nas pequenas atitudes, que podem parecer besteira - mas juntas para mim não são. Basta uma gota para fazer o copo transbordar. Parece que o encanto terminou e eu já não sinto como se eu estivesse me protegendo do mundo ao seu lado. Não sinto mais o seu cuidado ou preocupação comigo. E eu sempre gostei tanto disso...Eu já não vejo os seus olhos brilhando como os meus, cultivando qualquer mínima chance de nos encontrarmos. Eu já não vejo você cego do mundo. E isso é o tipo de coisa que não esfria e não muda com o tempo: é a base primordial da paixão, do amor, não um calor susceptível às estações do ano. E isso tem que ser natural, não dá pra agir assim por culpa ou querer obrigar o coração a querer algo - você sabe disso melhor do que eu.
Acumularam-se brincadeiras desnecessárias, comentários desagradáveis que você deixou fluir sem considerar quem os ouvia. Desde omissões até algumas mentiras. Gritos, grosserias e uma ou outra estupidez que é difícil de apagar. No lugar dessas coisas que surgiram, sumiram outras. Mas sumiram coisas boas. Sumiu o seu jeito de me olhar como se eu fosse a ultima coisa do mundo ou de reparar em alguma besteira em mim. De como você gosta de algo em mim como eu adoro quando a gente fica se olhando um tempão sem dizer nada. Ou como eu gosto quando você diz para eu escolher o filme. Ou como eu adorava a sua mania de fazer origami de tudo (principalmente daquele beija-flor) só para passar o tempo ou seus hábitos de abrir a porta do carro ou puxar a cadeira. Como eu adorava quando você achava um absurdo eu pensar que algumas coisas podiam não ser especiais pra você da mesma maneira que eram para mim, quando você dizia que era óbvio que eram. Ou mesmo o quanto eu adorava quando você me mandava uma mensagem de bom dia, ou ligava só para saber se estava tudo bem, entre uma reunião e outra. Aquela coisa de estar feliz e deixar isso transparecer, involuntariamente. Estar feliz só por estar junto. Eu sinto falta disso.Você se acostumou com a ideia de que me teria para sempre,quando a saudade apertasse ou a vontade surgisse. Se acostumou com a ideia de que eu largaria tudo e todos a qualquer momento, se você estivesse precisando de mim. Ou apenas quisesse. Ou apenas pensasse que poderia querer. Lamento, eu não sou assim... E se um dia eu me deixei ser, é bom que a gente deixe claro que não sou e não está nos meus planos agir como se fosse. Essas coisas estão destruindo o que há de bom entre nós dois...Passamos por várias coisas que ficarão para sempre na minha memória e que talvez eu nunca reviva com tanta intensidade. São lembranças que eu vou cultivar com muito cuidado, para que o tempo não leve embora, porque elas representam uma felicidade que eu nunca vou esquecer. Mas para cultivà-las talvez eu precise me afastar da fonte. É como os peixes: é alegre a chegada de filhotes, mas se não forem separados da mãe, ela acabará com eles. Depois, acabará consigo mesma. Apenas mais tarde, depois de maduros, poderão voltar a conviver pacificamente. Não quero que essas coisas ruins destruam as coisas boas.Nesse tempo que passamos separados eu amadureci muito. Eu mudei. Eu cresci. E você também mudou... Mas desculpe, não sei se foi uma boa mudança, ao meu ver. Não sei se você realmente amadureceu ou apenas mudou. Mas o fato é que, como você mesmo já falou, você precisa seguir o vento agora. Já eu, quero manter apenas a cabeça no vento, mas o coração eu firmo no chão. Pensar com o coração e sentir com a cabeça.Quando a gente gosta de verdade de alguém, tudo que a gente quer é estar com essa pessoa. E queremos também que essa pessoa sinta vontade de estar conosco. Apenas conosco. Você tem outros pensamentos, quer outras pessoas. A Manuela que o diga. Eu estou exausta, Lipe... Já não tenho pique para ficar advinhando essas coisas, ainda mais quando eu não sei se existe mesmo um pote de ouro no final ou se vai ser mais uma desilusão de me encontrar com o vazio.
Eu amo você, mas, infelizmente, isso não basta. A gente se vê por ai.
Alice


Lágrimas escorriam dos seus olhos - pela primeira vez ele estava chorando por ela. Nessa hora, a Manuela veio por trás dele e o abraçou. Ela havia acabado de acordar. "Bom dia, amor". Ela sussurou em seu ouvido e tudo que o Felipe pode fazer foi desfaçar as lágrimas, murmurar um bom dia e dizer que tinha espirrado café nos olhos, usando isso como desculpa para correr e lavar o rosto. Acabou.


Enquanto isso, a Alice dirigia para casa, meio triste, mas aliviada por ter feito a coisa certa. Ela dirigia e repetia, para si mesma, a música que tocava na rádio: "Now you're just somebody that I used to know...".